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ABEU Reflete: outubro de 2021

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Políticas públicas de acesso ao livro são suficientes para incentivar a leitura entre crianças e jovens? Para Maria Amélia Dalvi Salgueiro é preciso muito mais para se construir uma nação leitora: é necessário superar questões estruturais da sociedade brasileira para que o hábito de ler livros se consolide desde cedo. Fundadora e coordenadora do Grupo Interinstitucional de Pesquisa, Literatura e Educação e integrante do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação, Filosofia e Linguagens (Nepefil/Ufes), Maria Amélia Dalvi assina a coluna ABEU Reflete de outubro.

CRIANÇAS, JOVENS E O ACESSO À LEITURA

Maria Amélia Dalvi

Historicamente, os discursos médico e religioso – principalmente – alardeavam perigos inerentes à leitura quando franqueada aos “comuns”. Os supostos riscos iam desde cegueira e loucura, perpassando, também, a maior suscetibilidade ao “pecado”, como decorrência da imaginação desenvolvida por meio de um tipo específico de leitura: a literária. Não à toa, são paradigmáticas do início e fim da primeira Modernidade obras tais como Dom Quixote, de Cervantes, e Madame Bovary, de Flaubert, que têm como elemento nodal de sua constituição a relação entre leitores e ficção.

Todavia, a partir, principalmente, do século XIX, a leitura passou a ser defendida progressivamente por frações cada vez mais expressivas da sociedade, certamente para atender às demandas nascentes. Os “novos” argumentos em prol da leitura se apresentaram em formulações tais como a necessidade de se “fortalecer a identidade nacional por meio da literatura”, de se “formarem cidadãos bem informados”, de se “disseminar o bom uso da língua” ou de se “garantir o direito à fruição literária”. Por isso, a leitura passou a ser recomendada às crianças e jovens, e os melhores meios para se franquear o acesso ao livro (como suporte privilegiado do escrito) passaram a ser objeto de debates calorosos.

Nesse afã, ao longo do século XX, governos de todos os espectros políticos criaram campanhas em prol da leitura; Estados nacionais instituíram políticas (algumas bem-sucedidas, outras não...) para o livro e a biblioteca; currículos escolares legitimaram certas obras em detrimento de tantas outras (forjando “cânones escolares” que deveriam ser conhecidos por crianças e jovens em formação); cursos de formação de professores recomendaram práticas pedagógicas consideradas como as que mais se aproximariam do objetivo de ensinar a ler; filósofos digladiaram-se acerca da legitimidade ou não de se controlar o que cai nas mãos dos leitores... Tudo isso em nome de quê? De um objeto fugidio, pois poucos de nós poderíamos conceituar leitura de maneira inequívoca.

A leitura é uma prática humana produzida ao longo do tempo e que, como toda prática humana, se transforma historicamente, na correlação com processos socioeconômicos e culturais. Se, antes, a representação hegemônica da leitura era aquela realizada coletivamente, em voz alta, por um sujeito mais experiente que igualmente apresentava a “interpretação” correta ou modelar do lido – hoje, a maioria de nós pensa na leitura como uma atividade que se realiza individualmente. Se, antes, a leitura valorizada era aquela leitura “intensiva” de um mesmo texto (normalmente, textos sagrados ou clássicos) – hoje, nós valorizamos aqueles que leem, ao longo da vida, muitas diferentes obras, mesmo que de maneira fragmentária e às vezes dispersiva. Se, antes, o espaço privilegiado da leitura era o público (a Igreja, a biblioteca, a escola) – hoje, esse espaço principal é privado: a casa, ou a tela do smartphone ou do e-reader de uso individual.

O apontamento dessas transformações tem o fito de mostrar que a atividade de leitura não possui uma essência fixa, imutável; ao contrário, ela nasce de necessidades sociais e atende a necessidades sociais, mesmo quando é feita individualmente, de forma fragmentária e dispersiva (pois, certamente, o crescente individualismo de nosso sistema social explica parte dessas mudanças). A leitura é, portanto, algo que foi produzido pelo conjunto dos seres humanos na história, mas que, para se perpetuar, precisa ser socializado com cada indivíduo singular e, assim, apropriado e objetivado individualmente; e tendo se incorporado a cada um de nós é que a leitura pode, via transmissão intersubjetiva, ser legada às gerações seguintes.

E o que tudo isso tem que ver com o acesso de crianças e jovens à leitura? É a realidade – em sua existência material, com condições objetivas que independem de nossa vontade ou desejo individual – o que determina como a leitura acontecerá e quem dela poderá se apropriar, assim como determina quem a transmitirá, e em quais condições, às gerações seguintes. Noutras palavras, pensar o acesso à leitura por meio de projetos pessoais ou de políticas isoladas é não enxergar os determinantes efetivos da questão. Pensar no acesso dos indivíduos – sejam eles crianças, jovens ou quaisquer outros – à leitura requer a disposição para entender as condições sociais, históricas, econômicas, culturais e políticas nas quais as práticas humanas se dão.

Para defendermos a acessibilidade de crianças e jovens à leitura é necessário defender que, coletivamente, superemos um sistema de produção que mantém desigualdades aviltantes entre crianças e jovens de classes opostas. Um sistema que agudiza as diferenças de oportunidade entre crianças e jovens conforme seu sexo biológico (pois meninas e meninos, mesmo antes de terem consciência sobre os papeis de gênero, ainda têm acesso diferente à escolarização e são educados de maneiras distintas no que concerne ao conhecimento elaborado: artístico, científico e filosófico). Um sistema que tem no racismo um de seus pilares: coisa que se demonstra facilmente quando se analisa quem escreve, quem publica, quem ilustra, quem é premiado, sobre quem as obras falam e como... Um sistema que, enfim, naturaliza e legitima que as especificidades das pessoas com deficiências sejam ignoradas em nome de um projeto de acumulação, na mão de poucos, das riquezas materiais e imateriais produzidas pelo conjunto dos seres humanos.

A defesa honesta e consequente da igualdade de acesso à leitura pressupõe analisar a realidade em sua complexidade – eu diria em suas múltiplas determinações. Há uma tendência a se segmentar a questão da leitura sob o prisma das práticas individuais, ou das experiências singulares. Mas é necessário recobrar o chão da história e, assim, se resgatar a ideia de que a leitura é fruto do trabalho do conjunto dos seres humanos, devendo, pois, ser oportunizada a todas e todos.

Para isso, não basta que se defenda a aquisição de livros por meio de programas públicos ou que se apele pela redução de impostos ou criação de bibliotecas; tampouco basta que se fale em criar cursos de formação continuada para professores e mediadores de leitura. Tudo isso é importante e necessário; mas é necessário fazê-lo sem perder de vista o essencial. Só a superação de uma estrutura social que considera aceitável a permanência de desigualdades iníquas resolverá em definitivo a questão do acesso à leitura – e o acesso a tudo mais que tenha sido produzido pela inteligência e pelo trabalho humano, e que merece ser perpetuado ao longo do tempo, no movimento entre gerações.

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