Voz do Autor Entrevista com Luis Felipe Miguel, autor da Editora Unesp
Professor titular do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília, onde coordena o Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades (Demodê), Luis Felipe Miguel é o nosso entrevistado dessa semana na coluna A Voz do Autor. Doutor em Ciências Sociais pela Unicamp e autor de diversos livros, sua mais recente publicação é “Desigualdades e democracia: O debate da teoria política”, lançado pela Editora Unesp. Nesta conversa, o autor esclarece as relações ambíguas que a democracia mantém com a noção de igualdade, principal ponto de reflexão do seu último livro. Afinal, um governo democrático é voltado para o povo, ou para a maioria? É possível o Estado reprimir manifestações populares e ainda se dizer democrático? Estas e outras questões são tratadas por Luis Felipe Miguel na coluna de hoje.
1. Em "Desigualdades e democracia: o debate da teoria política" estão presentes textos de autores pertencentes a uma diversidade de correntes teóricas. Como organizador, qual o motivo de buscar vertentes tão divergentes, como o marxismo e o liberalismo, para refletir sobre as desigualdades inerentes ao sistema democrático?
O livro parte de uma questão central - como é possível que a democracia, que classicamente previa a igualdade dos cidadãos, conviva com sociedades tão desiguais - e mostra como diferentes correntes da teoria política lidam com ela. A ideia foi exatamente fazer com que cada vertente saísse da sua "zona de conforto", enfrentando questões que são colocadas a partir de outras perspectivas. Para ficar no exemplo que você deu: o liberalismo constrói uma narrativa de igualdade jurídica, de extensão do direito a todos, que é muito coerente internamente, mas que é desafiada quando correntes como o marxismo apontam que as desigualdades materiais comprometem fortemente a possibilidade de usufruir destes direitos. Por outro lado, o marxismo tende a se preocupar pouco com os controles institucionais ao exercício do poder, questão que o liberalismo aponta. As pesquisadoras e pesquisadores que se reuniram no projeto que deu origem ao livro julgaram que esse diálogo é que seria enriquecedor, proveitoso.
2. Em geral, qualquer líder político que se preze diz governar "a favor da democracia". Se posicionar como "democrático" é sempre visto como algo virtuoso. No entanto, ao reprimir uma manifestação popular, por exemplo, o Estado entra em embate com uma parcela da população, enquanto é apoiado por outro estrato da sociedade que é contra as reivindicações de um determinado movimento social. É possível um governo operar desta forma e ainda se dizer democrático, a partir do momento em que claramente entra em confronto com seu próprio povo?
A questão é que, a partir da metade do século XX, a democracia se tornou um valor que todas as forças políticas disputam. Todo agente político se diz democrático; antidemocráticos são sempre os seus adversários. E a linguagem corrente passou a aceitar, como democracias, regimes políticos em que o povo não governa - apenas delega o poder de governar a uma minoria. É possível dizer que essa delegação é inevitável, nas circunstâncias de sociedades tão populosas e complexas como as dos Estados modernos. Ainda assim, há uma desigualdade política entre governantes e governados. Sempre há o risco de que os governantes usem seu poder contra os governados e se legitimem dizendo que têm esse direito, já que foram autorizados em algum momento. Esse risco é tanto maior quanto é maior a desigualdade política. Isto é, existem grupos que são capazes de influenciar os governantes, à margem dos procedimentos democráticos, por controlarem determinados recursos valiosos. Por exemplo, os proprietários das grandes empresas ou dos meios de comunicação. Assim, embora o governo possa ter sido levado ao poder de maneira democrática (caso tenha sido eleito), muitas vezes age em favor de interesses minoritários. É por isso que a convivência entre democracia política e desigualdades sociais sempre é marcada por tensões.
3. De modo raso, se seguirmos a etimologia da palavra, democracia é o "governo do povo". No entanto, muitas vezes, quando se diz que um processo político foi democrático, ou que as eleições foram democráticas, o conceito por trás dessas falas se refere mais a uma ideia de "governo da maioria". Afinal, na democracia se governa para a maioria ou para o povo? Há realmente uma confusão conceitual ou a democracia abarca essas duas ideias?
Embora "democracia" seja literalmente o "governo do povo", na Antiguidade ela era definida como "governo de muitos", "governo da maioria" ou mesmo "governo dos pobres". De fato, até hoje a palavra "povo" guarda essa ambiguidade: pode designar o conjunto de uma população ou apenas a parte (majoritária) que não desfruta de privilégios. É quando trabalhamos com a oposição entre "povo" e "elite". Sendo governo do povo, a democracia vai buscar o benefício das maiorias desprivilegiadas. É, portanto, um regime que busca a redução das desigualdades.
Mas nós também usamos "povo" em oposição a "governo", o que nos leva à conclusão de que a democracia encerra uma contradição em termos: é o governo daqueles que não são governo. De certa forma, a necessidade prática de uma divisão do trabalho, que concentra as funções de governo em umas poucas pessoas, está sempre em contradição com a aspiração democrática de uma autonomia coletiva igualitária.
Por outro lado, a palavra "povo" está no singular, o que induz a equívocos. O povo, na verdade, é plural. São mulheres e homens, com diferentes trajetórias, ofícios, crenças, cores, valores. O desafio primeiro da organização política é compatibilizar essa pluralidade com alguma unidade que permita a vida em comum. A democracia é a ideia que, na construção dessa unidade, desse projeto de futuro coletivo que envolva a todos os participantes da sociedade, a voz de cada um valha o mesmo que a voz de qualquer outro.