Voz do autor - Ruy do Carmo Póvoas

1. Professor Ruy, sua produção intelectual é voltada para a reflexão sobre a influência da cultura negra no Brasil, especialmente suas influências na formação das identidades regionais. Deste modo, você acredita que tradições afro conseguem se manter preservadas atualmente, mesmo com as seculares discriminações que as manifestações da cultura negra sofreram ao longo da nossa história?
Eu não diria influências, pois ""influenciar"" cabe aos coadjuvantes. E em tal concepção, negros e índios foram autores tão relevantes quanto os brancos no processo de civilização brasileiro. Os imaginários de tais povos sofreram contaminação recíproca e disso se fez o nosso imaginário. Acontece que o branco sempre se estremou social e culturalmente. O ideal de nação e de civilização, no Brasil, sempre esteve atrelado à ideologias das classes dominantes, das quais índios e negros foram alijados. Na minha produção oriunda de meu fazer intelectual, acadêmico, literário e religioso sempre tentei deixar isso evidente. Muito mais do que uma questão regional trata-se de uma questão nacional. Evidentemente caldeada pelo colorido local. A preservação das tradições não depende necessariamente de obras publicadas. Antes, vale dizer que os processos educacionais implantados que venham priorizar o profundo respeito à diversidade, à multiculturalidade, ao modo de ser do outro, isso sim fará com as obras publicadas sejam tomadas e vistas como instrumentos de manutenção das tradições.
2. Sua obra é versátil, incluindo estudos acadêmicos, como A memória do feminino no candomblé, antologias, no caso de Mejigã e o contexto da escravidão, e também obras literárias, como o caso do recentemente lançado Fazenda de conto, fazendo de conta. O senhor acha importante transitar entre os estilos de escrita para desenvolver suas ideias? Quais as principais contribuições de cada formato para os assuntos que gosta de abordar?
Na verdade, meus escritos vieram e vem à tona como uma consequência natural da multiplicidade de papéis que desempenho. Este ano estou completando cinquenta anos de magistério, quarenta e um anos de exercício de babalorixá, trinta e dois anos de atividades como escritor e dez anos de posse na Academia de Letras de Ilhéus. Essa multiplicidade de fazeres e de viveres, somada ao tempo dedicado a estudos, debates, encontros, pesquisas e leitura, foi determinante para a variedade de focos, temas e assuntos que abordo em meus escritos. Não se trata, portanto, que eu ache importante transitar entre os estilos de escrita para desenvolver minhas ideias. Chega a ser compulsória a variedade de abordagens. Um exemplo: posso muito bem escrever um livro sobre a culinária do terreiro. E isso se deve a eu ter vivido toda minha existência nesse tipo de espaço, mas porque sou formado em Letras e ensinei Língua Portuguesa por trinta e cinco longos anos, tais experiências me possibilitam dominar os processos narrativos e descritos na minha língua materna. Porque sou contista, não me foi difícil escrever aquele conto O batetê. Quanto aos formatos, eles não estão dispostos no meu desempenho de usuário do português em camadas isoladas. Eles se interpenetram e estão disponibilizados em mim, na medida em que meus fazeres e viveres não passaram por um processo esquizofrênico. Ao contrário: sempre estive por inteiro fosse em que papel fosse que estivesse atuando. Se enquanto babalorixá priorizo a concepção de filho de Oxalá, descendente de Vó Mejigã em quinta geração, portanto descendente do povo Ijexá no Brasil, isso se alarga quando também adoto as concepções de Jung sobre Arquétipo. E se alarga mais ainda, quando incorporo as concepções de Gaston Bachelard sobre o real oculto e o dado evidente. Também porque adoto as concepções fundamentais do gerativismo em linguística, mais e mais a rede que utilizo para apreender e interpretar o universo e vida se torna sensível e proficiente.
3. Nos últimos anos houve significativas conquistas de reparação social no Brasil para a população negra. Mas, logicamente, ainda estamos longe do ideal. Na verdade, os danos sociais e culturais causados na população afrodescendente parecem estar tão enraizados que até hoje, no século XXI, vemos casos como o da garota que foi apedrejada por ir a um culto de candomblé, ou os recorrentes casos de repressão policial violenta aos negros nos Estados Unidos. O que o senhor crê que mantém ainda vivo este duradouro preconceito na sociedade contemporânea?
Em primeiro lugar, a evolução da raça humana ainda está muito longe de seu apogeu, quanto mais de sua conclusão. A natureza humana é virulenta. Tanto assim que, além dos vírus, somos um animal que destrói seu próprio habitat. Ainda estão incrustados nos humanos aquela escala de valores do tempo em que nossos ancestrais eram caçadores e coletores. O que pertencesse a outra tribo, a outro grupo, se constituía séria ameaça ao grupo que dominasse um campo de coleta, uma aguada que fornecia o que beber. Tudo isso acrescido por nossa origem cultural românica, peninsular, que trouxe para aqui uma ideologia calcada nos fundamentos judaico-cristãos de que o filho de Deus era branco, a mãe do filho de Deus era branca, os anjos são brancos, Deus é branco e a brancura é do reino dos céus. Enquanto isso, tudo que fosse preto lembraria o tinhoso. Os religiosos de origem europeia sempre tomaram suas escrituras como relatos históricos verdadeiros. E enquanto isso, os relatos de outros grupos seriam ciladas do demônio para corromper os filhos de Deus. Isso, em parte, explica porque Esopo, La Fontaine e outros tiveram seus textos circulando nos lares e nas escolas brasileiras e, enquanto isso, a produção oral de índios e negros foi barrada naqueles dois ambientes. Enquanto o sistema educacional brasileiro, os educadores e professores não tomarem consciência disso, não há como barrar o preconceito de cor, de sexo, e até mesmo de time de futebol.
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